De Hanover Park ao Porto: Como os anos de Benni McCarthy no Porto transformaram um talento sul-africano num vencedor europeu
A estreia internacional de Benni McCarthy pela África do Sul em 4 de junho de 1997 — num amistoso contra os Países Baixos — foi o primeiro capítulo de uma carreira que subiria dos campos dos bairros periféricos até aos mais altos palcos do futebol de clubes. O que se seguiu foi uma história de persistência, adaptabilidade e um período decisivo em Portugal que transformou um goleador talentoso num profissional completo e taticamente consciente.
Raízes e determinação
Criado em Hanover Park, na Cidade do Cabo, numa área marcada por oportunidades limitadas e dificuldades diárias, McCarthy cresceu num ambiente em que o futebol não era apenas um passatempo, mas sim uma via de escape. O seu talento era evidente desde cedo e, como muitos grandes talentos africanos, a sua qualidade levou-o para além das competições locais, entrando no radar do futebol europeu.
Primeiros passos na Europa
A sua mudança para o Ajax marcou o primeiro contacto prolongado com o futebol europeu de alto nível. Na Holanda, McCarthy viveu o sucesso doméstico e conheceu as estruturas profissionais que acompanham clubes de elite — conquistando títulos de liga e taça e aprendendo as exigências de jogar longe de casa. No entanto, esses anos serviram mais como preparação do que como destino: o período mais marcante da sua vida desportiva chegaria após a transferência para Portugal.
Porto: o cadinho de transformação
Chegando ao FC Porto em 2002, McCarthy encontrou um ambiente que o iria desafiar e aperfeiçoar. Sob o comando de José Mourinho, deixou de ser apenas um finalizador nato para se tornar num avançado com consciência estratégica. As exigências táticas de Mourinho pediam que os avançados fizessem parte da estrutura defensiva, pressionassem de forma inteligente e lessem o jogo para além do momento de finalização. McCarthy assimilou essas lições e transformou-se num jogador tão valioso pelo seu trabalho sem bola quanto pela sua capacidade de marcar golos.
A época 2003–04 e a glória europeia
A temporada 2003–04 permanece como a mais decisiva da carreira de McCarthy. Ele coroou a campanha nacional com um hat-trick dramático na última jornada que lhe garantiu a Bota de Ouro — terminando com 20 golos em 23 jogos — e confirmou o seu instinto letal. Na Liga dos Campeões, foi fundamental na caminhada notável do Porto; os dois golos que marcou contra o Manchester United, nos oitavos de final, foram decisivos para virar o rumo da eliminatória a favor dos portugueses. A temporada terminou com a conquista da Liga dos Campeões — um feito histórico para o futebol sul-africano, com McCarthy a tornar-se o único jogador do seu país a erguer esse troféu.
Lições aprendidas — tática, dureza e união
O Porto, como McCarthy afirmou diversas vezes, foi mais do que um clube: foi uma verdadeira escola. A disciplina coletiva, o trabalho diário e a vontade intransigente de vencer tornaram-se princípios centrais na sua forma de viver o futebol. A influência de Mourinho ia para além dos treinos e planos de jogo; transmitia uma mentalidade — exigindo flexibilidade tática, confiança mútua entre companheiros e a disposição para sacrificar a glória individual pelo sucesso coletivo. Para McCarthy, estes não foram conceitos abstratos, mas hábitos enraizados em treinos intensos e jogos de alto risco.
Aplicando os ensinamentos do Porto como treinador
Esses princípios moldados no Porto voltaram a surgir na sua carreira como treinador. Ao comando da seleção do Quénia, os Harambee Stars, McCarthy conduziu recentemente a equipa a uma vitória notável por 1–0 sobre Marrocos, mesmo após uma expulsão precoce que deixou a sua equipa em inferioridade numérica. McCarthy creditou a forma como a equipa se reorganizou, defendeu coletivamente e protegeu a vantagem mínima às lições aprendidas em Portugal: quando se perde a posse de bola, confia-se na estrutura, no trabalho árduo e na compactação — por vezes é necessário defender com solidez e deixar que um único avançado mantenha a ameaça no ataque. A imagem que ele transmitiu — de avançados ajudando defensivamente e defesas subindo ao meio-campo — é um reflexo direto do modelo que viveu no Porto.
Uma carreira para além do Porto
Embora o Porto represente o ponto central do seu legado, o percurso de McCarthy vai muito além. Ele deixou a sua marca na Premier League inglesa com o Blackburn Rovers, onde demonstrou capacidade para marcar de forma consistente no mais alto nível doméstico da Europa. Mais tarde, regressou à África do Sul e encerrou a sua carreira em grande no Orlando Pirates, ajudando o clube a conquistar o campeonato. Cada paragem acrescentou novas dimensões a um jogador que já tinha sido moldado em Portugal.
Legado e influência
Hoje, a trajetória de McCarthy — dos Cape Flats até vencedor da Liga dos Campeões e treinador internacional — é ao mesmo tempo inspiração e lição para jovens jogadores africanos. A sua história demonstra como o talento bruto, quando aliado a um treino rigoroso e a uma cultura de equipa implacável, pode gerar resultados de nível mundial. Como treinador e mentor, transmite agora os hábitos que absorveu no Porto de Mourinho: inteligência tática, dedicação incansável e insistência na responsabilidade coletiva. Para muitos, McCarthy é prova concreta de que as origens não precisam ditar o destino — com disciplina, oportunidade e a orientação certa, é possível reescrever a própria história.